Esse texto é escrito por Vinícius Zambiazzi, acadêmico de Filosofia.
Segundo conta a tradição, Demócrito de Abdera (460-370 a.C) foi discípulo de Leucipo, tendo escrito, como nos sugere Diógenes Laércio em seu livro “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”, uma imensa obra (comparada, muitas vezes, às obras de Platão no que tange à abrangência e importância). Contudo, restam-nos poucos fragmentos destas, bem como poucas informações confiáveis acerca de sua vida.
Sua principal teoria acerca da constituição primeira da natureza nos é acessível apenas por relatos secundários de autores como Diógenes Laércio, Simplício, Aristóteles, entre outros. Foi um importante expoente do chamado “atomismo” (cuja fundação é atribuída, muitas vezes, à Demócrito e não à seu mestre Leucipo), além de ter se interessado por assuntos como lógica, moral, astronomia, etc.
Como sugere Luís Felipe Bellintani Ribeiro (2008), o atomismo de Demócrito parece ser uma resposta ao eleatismo e seus impasses, sendo crucial para o desenvolvimento das modernas teorias sobre a constituição da matéria. Sua formulação surpreende no que diz respeito ao método: não possuindo instrumentos de experimentação e verificação (algo profundamente prezado pelas ciências posteriores), Demócrito propôs, apenas por dedução lógica, a existência do que ele chama de “pleno” e “vazio” como princípios originários do mundo. Tal teoria é descrita por Aristóteles em sua obra “Metafísica”, da qual vale, devido seu alto teor explicativo e didático, a menção da seguinte passagem:
Leucipo e seu colega Demócrito admitem como elementos o pleno e o vazio, denominando ao primeiro “ser” e ao segundo “não-ser”; e dentre estes o pleno e sólido constitui o ser, o vazio o não-ser (razão pela qual afirmam que o ser existe tanto quanto o não-ser - pois que o vazio existe tanto quanto o corpo), e são estas as causas materiais das coisas existentes. E, da mesma forma como aqueles que admitem uma única substância subjacente derivam as outras coisas das propriedades desta, fazendo do rarefeito e do denso origens das propriedades, afirmam esses homens que a diferença [entre os átomos] são as causas de todas as outras coisas. Sustentam que as diferenças são em número de três - forma, ordem e posição. A letra A difere da letra N em forma; AN difere de NA em ordem; e N difere de Z em posição. Quanto ao movimento (de onde e como os seres existentes o adquirem), também eles, a exemplo dos demais, negligentemente se omitiram de investigar. (negritos acrescentados) (BARNES, 1997, p. 291 - 292 apud ARISTÓTELES, Metafísica, 985b4-20)
Com relação à possibilidade do conhecimento, nos diz J. Barnes que o atomismo como apresentado por Demócrito “tratava-se, ao mesmo tempo, de uma teoria que continha, ao que parece, implicações profundamente céticas” (BARNES, 1997, p.295-296). Demócrito entende a constituição dos seres e suas propriedades como pertencentes a duas instâncias de formação:
1. Em um nível primário, formado por átomos e vazio, com propriedades de indivisibilidade, inapreensão sensorial, e formas infinitas e diferenciadas; e
2. Em um nível secundário, como reflexo da aparência que a junção destes elementos simples produz, com propriedades como gosto, cheiro, cor, etc.
Por serem imperceptíveis devido a sua infinitesimal dimensão, não podemos, através dos sentidos, “perceber” os átomos e o vazio, nos sendo acessível apenas o modo como estes nos aparentam ser, ou seja, não observamos a “coisa-em-si”, apenas o modo como esta se nos aparenta. O seguinte fragmento, encontrado em sua obra “Suportes”, elucida razoavelmente bem a insuficiência dos sentidos na apreensão e explicação das coisas no mundo, bem como a real constituição dessas, falha à nossa apreensão sensorial:
Por convenção existe o doce e por convenção o amargo, por convenção o quente, por convenção o frio, por convenção a cor; em realidade somente existem átomos e vazio. (BARNES, p. 297 apud DK, B 125)
A fim de evitar um possível relativismo epistemológico (apesar de existirem passagens contraditórias do próprio Demócrito quanto a isso), argumenta-se baseado na seguinte passagem encontrada em seu escrito “Sobre as Ideias”:
Em realidade, nada conhecemos com precisão, mas somente enquanto se modificam as coisas, segundo a disposição do corpo e das coisas que nele penetram e das coisas que lhe opõem resistência. (BARNES, p. 297 apud DK,B 9)
Outro ponto que corrobora a visão de um forte ceticismo em Demócrito é seu argumento “ou mállon”, traduzido como “não mais isto do que aquilo”, como resposta ao “ser” dos eleatas:
Duas são as formas de conhecimento, uma genuína e a outra obscura. À obscura pertencem os seguintes: visão, audição, olfato, paladar e tato. A outra, separada desta <...>” (BARNES, p. 298 apud DK, B 11a)
Continuando com a defesa da superioridade do conhecimento genuíno acima do obscuro:
Quando a obscura se mostra incapaz de ver com maior apuro, ou ouvir, cheirar ou perceber pelo tato, exigindo uma busca mais sutil <..>”(BARNES, p. 298 apud DK, B 11b]
Diferenciando as formas de conhecimento entre “genuína” e “obscura” (acessíveis através do entendimento e dos sentidos, respectivamente), Demócrito defende a percepção das propriedades secundárias dos objetos (percebidas pelos sentidos, tais como a doçura ou amargura do mel, etc) como pertencentes ao nível obscuro do conhecimento, tornando-se impossível a veracidade da resposta acerca da constituição do ser por meio sensorial: este pode ser tanto doce como amargo, de uma cor ou outra, podendo sê-lo para cada um de maneira diferente, dependendo da percepção do sujeito. Dessa forma, o conhecimento, se possível, não poderia ser obtido através de uma via sensorial/obscura (devido a esta variar uma vez que dependente da subjetividade do ser do sujeito), mas sim do entendimento racional/genuíno das coisas.
Conforme o exposto anteriormente, pode-se notar a forte presença de um ceticismo em Demócrito através dos argumentos baseados em suas distinções primárias e secundárias das propriedades das coisas, bem como de sua argumentação via ou mállon. No que tange seu legado para a posterioridade, é evidente sua contribuição para o ramo da química e da física, com sua teoria atomista posteriormente verificada e aperfeiçoada nas experiências de cientistas como Robert Boyle, Rutherford, Bohr, Chadwick, entre outros; no que tange sua grandiosidade, vale ressaltar sua audácia na elaboração de um modelo de explicação da natureza utilizando-se apenas da razão, mostrando, assim, a grandiosidade da especulação filosófica.
BARNES, Jonathan. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 367 p. Tradução: Julio Fischer.
H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker. (Berlim, 1952, 10ª edição)
LAêRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed. Brasília: Unb, 2008. 360 p. Tradução: Mário da Gama Kury.
RIBEIRO, Luís Felipe Bellintani. História da Filosofia I. Florianópolis: Licenciaturas A Distância Filosofia/ead/ufsc, 2008. 203 p.
TAYLOR, C. C. W. "Os atomistas". In: LONG, A. A. (org.) Os primórdios da filosofia grega, p. 245-269.
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